AINDA DE MADRUGADA

Luz inesperada

Preparei a casa para te esperar:
procurei nos cantos o passado
e engastei-o à soleira da porta,
petrificado em dor, mas refulgente.

Não foi necessário mudar de casa
para te esperar. Bastou a tua vinda,
ainda de madrugada, para que tudo mudasse,
e a lua crescente surgisse ao meio dia.

A cama está feita, a mesa está posta,
nas compoteiras brilham sobremesas
feitas para adoçarem a tua boca
quando a vida amargar, travar-se o riso.

Meu corpo não é o mesmo de ontem,
mas é mais virgem, através das horas,
que me apartaram de outros desejos
dos quais me afasto, emigrada de mim mesma.

Foi gratuito o teu chegar. Por isso fica:
permanece em mim e esquece a lágrima.
Te esperei para chamar-te "meu amor",
embora ingressem em minha voz e corpo

antigas sereias, com pentes de espelhos,
a retrançar meus cabelos destrançados,
e te convidem para o sábio mergulho
onde habitaremos: nós e o tempo.


Esporas do tempo
Maria da Conceição Paranhos (Salvador de Bahia, 1944)

Fotografía de Sam Rock

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