O Fidalgo da Torre
Desde as quatro horas da
tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho, o
Fidalgo da Torre, em
chinelos, com uma quinzena de linho envergada sobre a
camisa de chita cor-de-rosa,
trabalhava. Gonçalo Mendes Ramires (que
naquela sua velha aldeia de
Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa
Vila-Clara, e mesmo na
cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo "Fidalgo
da Torre") trabalhava
numa Novela Histórica, A Torre de D. Ramires,
destinada ao primeiro número
dos Anais de Literatura e de História, revista
nova, fundada por José
Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra,
nos tempos do Cenáculo
Patriótico, em casa das Severinas.
A livraria, clara e larga,
escaiolada de azul, com pesadas estantes de pau-preto
onde repousavam no pó e na
gravidade das lombadas de carneira, grossos
fólios de convento e de
foro, respirava para o pomar por duas janelas, uma de
peitoril e poiais de pedra
almofadados de veludo, outra mais rasgada, de
varanda, frescamente
perfumada pela madressilva que se enroscava nas grades.
Diante dessa varanda, na
claridade forte. pousava a mesa — mesa imensa de
pés torneados, coberta com
uma colcha desbotada de damasco vermelho, e
atravancada nessa tarde
pelos rijos volumes da História genealógica todo o
Vocabulário de Bluteau,
tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as
obras de Walter Scott
sustentando um copo cheio de cravos amarelos. E daí,
da sua
cadeira de couro, Gonçalo Mendes Ramires, pensativo diante das tiras
de papel almaço, roçando
pela testa a rama de pena de pato, avistava sempre a
inspiradora da sua Novela —
a Torre, a antiquíssima Torre, quadrada e negra
sobre os limoeiros do pomar
que em redor crescera, com uma pouca de hera
no cunhal rachado, as fundas
frestas gradeadas de ferro, as ameias e a
miradoura bem cortadas no
azul de Junho, robusta sobrevivência do Paço
acastelado, da falada Honra
de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde
os meados do século X.
Gonçalo Mendes Ramires
(como confessava esse severo genealogista, o
morgado de Cidadelhe) era
certamente o mais genuíno e antigo Fidalgo de
Portugal. Raras famílias,
mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência,
por linha varonil e sempre
pura, até aos vagos Senhores que entre Douro e
Minho mantinham castelo e
terra murada quando os barões francos desceram,
com pendão e caldeira, na
hoste do Borguinhão. E os Ramires entroncavam
limpidamente a sua casa, por
linha pura e sempre varonil, no filho do Conde
Nuno Mendes, aquele
agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de
Santa Ireneia, que casou em
967 com Dona Elduara, Condessa de Carrion,
filha de Bermudo, o Gotoso,
Rei de Leão.
A ilustre Casa de Ramires
Eça de Queiroz
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