FERNANDO PESSOA NO ALTAR DA PALAVRA
Fernando Pessoa no altar da palavra
Regressou de Durban a Lisboa, aos 16 anos,
com o malogrado o fito de se matricular
no Curso Superior de Letras.
Dissipou a herança da avó paterna,
numa tipografia que foi à bancarrota.
Abandonou-se à solidão visionária.
Via, sob o luar, da Graça ou de S. Pedro de Alcântara,
o colorido tranquilo da cidade.
Experimentava estados de alma.
O Destino, maior que o Tejo,
dera-lhe, claro abismo,
o rio da passagem das horas.
Forjou a utopia mística da Pátria:
o Quinto Império, com Dom Sebastião
cingido pelo Diadema do Cristo,
em madrugada de celestial grandeza.
A realidade ambiente o impelia a sondar
os limites da condição humana.
Matou-se, em Paris, Sá Carneiro.
Mataram Sidónio Pais no Rocío.
O povo reagia por instinto coletivo.
À beira-mágoa, sob a chuva oblíqua,
restava-lhe desdobrar-se em máscaras,
de múltiplas reflexões.
Um triste compêndio teceu,
no desassossego das tarefas repetitivas,
vigiado por um chefe de ideias estreitas.
Fez-se Alberto Caieiro, cidadão de província,
panteísta, andarilho dos bosques de Sintra,
percebendo o mundo com naturalidade.
Mestre de si mesmo.
Satisfeito com metafísica de não pensar,
porque nada se interpunha entre as coisas e seu olhar.
Fez-se Álvaro de Campos,
passional, afirmativo até na negação,
refugiado na metafísica do cotidiano,
extravasando excessos irreprimíveis.
Fez-se Ricardo Reis, horaciano,
perplexo ante a mutação de tudo
e a precariedade das percepções.
Imerso na serenidade e no despojamento.
A taça de vinho à mão, deitado junto a Cloé, Lídia ou Neera,
eludindo a sombra ameaçadora do tempo.
Era um Fernando, entre pessoas,
emissário de um Deus
de onde a vida dos seres acontece.
Não nascera para conservador da Biblioteca de Cascais,
mas para exegeta de sua própria instabilidade.
Nada impedia o seu meditar desiludido.
Nem Ofélia Queiroz, a ceifeira,
orlada pela inconsciência e pela consciência.
Nem a vaga náusea do sossego da noite.
Inadaptado à vida, sacrificou-se no altar da palavra.
Extravasou-se na verdade imaginária.
Encheu a velha arca de manuscritos,
no breve encanto da vida.
Cavaleiro monge, a cismar no mar,
perdido nos píncaros do segredo.
Argonauta, irmão do assombro e do êxtase.
Alma Atlântica, exilada nos campos,
bebendo angústias na taça do poente.
Pela virtude da palavra transfigurada,
desperto, tudo viu além:
incêndios no cataclismo da ânsia,
sensações nas tardes calmas de tédio.
Íntimo vigilante de plagas ermas.
Adorador de sombras imperecíveis.
Persona, a materialização do seu próprio sonho.
Eleito pelo mal da desventura.
Cérebro da raça, no mais alto degrau da escada.
Márcio Catunda (poema)
Pinturas. 1. Collage. 2-João Beja. 3-José de Almada Negreiros. 4-Luis Badosa. 5-Antonio Guimaraes Santos. 6-Francisco Xicofran.
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